Álvaro de Campos (Heterónimo de Fernando Pessoa) n. 15 Out 1890

Álvaro de Campos

Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Pessoa, é descrito, na carta a Casais Monteiro, como alguém de «cabelos lisos, risco ao lado e com tendência a curvar-se».

Nasceu em Tavira a 15-10-1890. Fez o curso liceal em Lisboa, mas licenciou-se em Engenharia Mecânica, em Glasgow na Escócia.

Como Pessoa, Campos apresenta-se como um corpo/alma errante, até dentro de si próprio, sem poiso, sem lar. Encarnou outras doenças de Pessoa, como a abulia e a insónia.

Álvaro é intenso e problemático, assumindo todas as provocações da Modernidade. Em «Saudações a Walt Whitman», diz: «Ardendo com ter toda a Europa no cérebro». Embora não seja um fiel seguidor de Marinetti, adere ao Futurismo, como a esperança do momento para a sua perturbação psíquica. Por isso, surgem as Odes, com o elogio da vida moderna, da multidão, da velocidade e da máquina. É a explosão momentânea, tentando apaziguar o conflito interior, desejando experimentar novas sensações, após uma primeira fase de tédio profundo em relação à vida e à civilização. Nesta segunda fase, futurista, apresenta a Ode Triunfal e a Ode Marítima, defendendo uma estética não aristotélica, uma vez que a arte não deveria privilegiar a beleza, mas sim a força. Daí a apologia da máquina e da revolução industrial. Por isso, Álvaro revela sensações intensas desencadeadas pelo ritmo alucinante das máquinas e da vida moderna. Adota o verso livre, num estilo torrencial, marcado por versos longos e pelo uso frequente de exclamações e de interjeições.

Porém, é na terceira fase que todo este ambiente se desfaz, culminando numa atitude de atonia, resultante de um desalento e ceticismo profundos em relação à vida. São exemplos os poemas Lisbon Revisited (de 1923 a 1926 ) e  O Que Há Em Mim É Sobretudo Cansaço. A angústia deste período é adensada pela consciência da irreversibilidade do tempo e da consequente impossibilidade do regresso ao passado e à infância. É exemplo o poema Aniversário.

Nesta terceira fase de caráter intimista, a revolta, o inconformismo, a solidão, a angústia existencial e a nostalgia da infância são predominantes. Surge o isolamento e o distanciamento, «Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? (…) Vão para o diabo sem mim», in Lisbon Revisited (1923).

Campos é, pois, a complexidade do ser humano, a inquietação constante de um ser que procura a felicidade mas que se introduz numa teia labiríntica, da qual não consegue sair. A recusa da rotina e do vulgar afasta-o da sociedade, refugiando-se na escrita criativa e intelectualizada.

Recolha Professora Estela Coutinho ( 17-out-17)

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho… )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos …
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! …

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

Álvaro de Campos, in “Poemas”
Heterónimo de Fernando Pessoa

 

 

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço…

Álvaro de Campos, in “Poemas”
Heterónimo de Fernando Pessoa